No segundo semestre de 1966, o fantástico quarteto de Liverpool passou por mudanças radicais, novas imagens viriam a ser projetadas em um caleidoscópio efervescente, qual seria o ano de 1967. Depois da turnê americana e os divisores de águas Rubber Soul/Revolver, a banda perdeu interesse no que vinha fazendo. Os shows não lhe enchiam mais os olhos, há muito tempo. Não conseguiam se ouvir diante tanta gritaria das fanáticas adolescentes e nada é pior do que um músico tocar sem se ouvir, é como ser cego em tiroteio, como procurar agulha em palheiros. Ademais, os últimos discos começaram a se tornar impraticáveis ao vivo, o que foi crucial para assumirem uma nova posição. A banda estava instigada a usar o estúdio como instrumento, tal como, meses antes, ainda em 66, Brian Wilson vinha fazendo com o Pet Sounds, maior influência do SGT Pepper. Como George Martin e Paul McCartney já disseram incontáveis vezes, se não existisse o Pet Sounds, consequência natural seria a não existência do SGT Pepper.
Depois do primeiro passo, da decisão que tomaram sobre abandonar turnês, restava, agora, serem agraciados por algum conceito interessante para o próximo álbum. Precisaram ir além. O desejo da banda era trazer algo completamente novo, ao ponto de Paul McCartney conceber a idéia de que se tornassem em uma outra banda, livres de qualquer algema do passado presa aos pés, Paul queria que eles deixassem de ser Beatles em troca de novos alter egos e Mal Evans foi um personagem muito importante no amadurecimento desse conceito, alimentando cada vez mais essa idéia em Paul.
Um dos livros que eu talvez tenha mais grifado em minha vida foi o Paz, Amor e SGT Pepper, do George Martin, que documentou essa época de forma absolutamente incrível. Martin, além de essencial realizador do disco, foi muito competente em documentar os bastidores, mérito que talvez se apoie consideravelmente ao fato dele ser o único sóbrio dentro daquele universo fantástico. O livro traz personagens que raramente são lembrados, além das complexidades e desafios diante a ambiciosa gravação, o orçamento absurdo de produção, as drogas, os conflitos internos e a brilhante forma como tudo se amarrou.
A banda gravou o SGT Pepper somente pelas madrugadas, isso trouxe alguns problemas ao relacionamento domiciliar de Martin. Escolhiam a dedo dezenas de músicos eruditos virtuosos, independente de quanto custassem ou a posição que ocupassem, mandavam e desmandavam. Martin e Emerick fizeram mágicas atrás de mágicas para alcançar os sons e timbres desejados por Lennon e McCartney. É impressionante demais, surreal ao extremo, pensar sobre tudo que ocorreu nos bastidores do disco, sobre todo caminho e como tudo funcionou. Talvez, mais impressionante ainda seja somente o resultado final, que é como milagre a olhos vistos.
Antes dos personagens do disco nascerem, antes de Lucy, Mr. Kite, do jovem que teria 64 anos, das gravatas de vidro, da adorável Rita… SGT Pepper nascia através do reflexo de memórias de infância em Liverpool e, uma das ferramentas mais inspiradoras para o conceito do disco, naquele instante, foi o revolucionário Mellotron, eternizado em Strawberry Fields Forever, canção que saiu em compacto, ficando de fora do disco.
Toca o absurdo considerar que esse álbum foi gravado em quatro canais. Quase inacreditável. Todas as emendas de fita, as sonoplastias, as camadas de som, os overdubs, toda a alquimia da coisa é de arrepiar. Martin e Emerick merecem reconhecimento eterno, foram peças mais do que essenciais e, sem eles, não haveria a menor possibilidade de tornar real o que havia dentro da cabeça de McCartney, Lennon, Harrison e Starr.
É estarrecedor pensar na linha do tempo do disco, de sua concepção à sua conclusão. Faz parte da condição humana considerar o passado sempre melhor do que o presente, temos fortes tendências nostálgicas em nosso DNA. O presente é sempre um desafio constante. No entanto, quando paro pra pensar sobre a realização do disco como um todo, só consigo o inserir em um futuro distante, muito distante. Pet Sounds e SGT Pepper’s Lonely Hearts Club Band são discos que nunca pertenceram à lógica de seu tempo, é como desafiar o futuro por todo tempo, driblando tecnologia, conceitos e protocolos. São obras que superaram o tempo, incansavelmente, até os dias de hoje, décadas depois.
SGT Pepper’s Lonely Heats Club Band é como um mergulho em águas termais. É sobre convalescer diante de tudo, é arte em seu conceito máximo, mais puro, só de olhar para a capa do disco, assinada por Peter Blake, já é pura satisfação.
O que falar sobre o fuzz nos riffs que percorrem os segundos inicias do disco? E sobre a vontade de cantar o hino With a Little Help From My Friends em plenos pulmões? Como não flutuar na companhia de Lucy em um céu de diamantes? Quando estivermos bravos, será que podemos brindar o otimismo de Getting Better? Poderíamos nos perguntar sobre os mistérios de Fixing a Hole? O refrão de She’s Leaving Home já foi capaz de lhe arrepiar? Onde será que Lennon estava com cabeça enquanto olhava o pôster circense de Mr. Kite, será que ele nos convence sobre um espetáculo real? Já achou alguma paz interior com Within You Without You? Já lembrou que um dia pode perder o cabelo quando tiver 64 anos? Já se imaginou ser multado pela Rita ao parar no lugar errado? Já teve vontade de distribuir "bom dia" de maneira automática numa manhã sem nada mais pra dizer? Já se emocionou com Lennon em A Day in the Life? Pra todas essas questões, naturalmente sim. No meu universo, é impossível negar qualquer uma.
Imagina se pudéssemos ser uma mosquinha a voar em Abbey Road, pela madrugada em que a sinfonia de A Day in the Life foi gravada, na companhia dos maiores músicos eruditos da Europa, que trajavam smoking, chapéus coloridos, nariz de palhaço, orelhas de borracha e máscaras (um pequeno exemplo do poder dos desejos dos Beatles), episódio que contava com a presença de inúmeros músicos da cena inglesa, inclusive, gente como os Rolling Stones, todos dentro do mesmo estúdio, derretidos em viagens de ácido.
O cenário desse tempo é inesgotável. Voltaremos a falar desse disco, indubitavelmente. Não há forma alguma de o esgotar e sua fórmula será sempre inspiradora, misteriosa, fantástica.
Hoje vivemos tempos estranhos, onde tudo é incerto, tudo é doloroso, penoso. O futuro é puro terror, angustia, ansiedade. Vivemos uma realidade trágica, terrível. SGT Pepper me salva constantemente, pelo remédio que se tornou em minha realidade, por me trazer esse mundo distante do nosso e me brindar com a companhia desses tantos personagens que, para sempre, farão parte da minha vida. SGT Pepper me encoraja em ignorar o futuro, pelo simples fato de já ter nos provado que isso é possível. Não há nenhuma peça que o futuro possa nos pregar. O futuro é um bicho papão, cabe a nós espantá-lo e, na companhia de SGT Pepper, poderemos estar bem protegidos.
Até os próximos capítulos do SGT Pepper!
-Gus Maia
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