Bem-vindos de volta!
No nosso encontro anterior, abordamos o quanto os Beatles entregaram em tão pouco tempo, e sempre como referencial de qualidade. Hoje, não é incomum ver bandas com décadas de carreira, mas quantas destas chegaram ao patamar de fenômeno de massa mundial como os Beatles? Uma dúzia, talvez? E quantas destas continuarão no topo mais de meio século depois que encerrarem suas atividades?
Mas de onde vem tamanha influência e reverência? Quando se trata de música, muitos associam qualidade à maestria dos músicos, à profundidade das composições ou ao carisma das melodias. Os Beatles nunca foram os músicos mais técnicos. Na verdade, nenhum deles jamais aprendeu teoria musical ou partituras. Autodidatas apaixonados pelo rock'n'roll, há uma anedota em que um jornalista confronta o Paul sobre ser verdade que eles não sabiam escrever música. Paul, captando imediatamente a oportunidade para um trocadilho sarcástico, responde que sim; quando ele ou John tinham uma ideia, a assobiavam para o outro, que respondia com outro assobio, e assim eles sabiam que tinham algo pra produzir.
Não, eles não são rotulados por tantos como a maior banda de todos os tempos por conta de suas habilidades técnicas, e nem como compositores (ficaríamos dias aqui enumerando canções que se equiparam ou os superam nos mais variados quesitos).
Seria então por seus recordes, tão imponentes e longevos? Afinal, até hoje tem artista que comemora quando supera os Beatles em alguma estatística. O rapper Drake, por exemplo, debochou dos Beatles em 2022 ao finalmente superar um recorde estabelecido 52 ANOS ANTES (!!). Até então, ninguém tinha conseguido bater as 29 músicas liderando as listas da Billboard. Só lamento que ele tenha precisado de 16 anos de carreira para conquistar tal feito (enquanto os Beatles fizeram isso e muito mais na metade deste tempo). E, convenhamos, o oitavo álbum de Drake, lançado em 2023, foi amplamente criticado por fãs e críticos. Alguém aí já encontrou um álbum ruim dos Beatles? (Relevem o momento fanboy ofendido, please!)
Certamente, vários fatores contribuíram para elevar os Beatles à categoria de lendas. No entanto, acredito que o grande diferencial está em seu pioneirismo, inovações e experimentações. Sem eles, muitas bandas provavelmente não existiriam ou teriam uma sonoridade completamente diferente. Ou não! Talvez existiriam e soariam como as conhecemos, mas a tecnologia e abordagens de gravação teriam vindo tão mais tarde, que provavelmente estas bandas perderiam parte de seu apelo por estarem na época ‘errada’. É difícil acreditar que bandas icônicas como Queen, Pink Floyd ou Oasis teriam a sonoridade marcante que têm se não fossem as experimentações e ousadia daquele quarteto de Liverpool.
Considere o seguinte: mesmo para aqueles de nós nascidos no milênio passado, é um grande desafio imaginar um mundo sem a hoje onipresente proliferação e acesso cotidiano às tecnologias digitais e virtuais. Nós as encaramos com tanta naturalidade, que é difícil conceber que houve um mundo diferente antes. E ninguém pensa em como chegamos no ponto em que estamos ou de onde veio a fagulha inicial. Assumimos que as coisas são assim e pronto. Podemos dizer que algo semelhante aconteceu com os Beatles, o rock e a indústria da música. Eles expandiram os horizontes da forma de fazer, gravar, trabalhar e arranjar músicas, de experimentar novos sons e misturar referências, obrigando os engenheiros de som em sua brilhante equipe a desenvolverem dinâmicas cada vez mais versáteis para materializarem suas ideias.
E quais foram estas inovações tão preciosas? Qualquer busca rápida online pode te trazer longas listas destes feitos, mas vou destacar meus favoritos.
• Foco no trabalho autoral. Era incomum artistas escreverem suas próprias músicas, muitos eram apenas intérpretes. Os Beatles já começaram colocando em seus 2 primeiros discos 17 músicas próprias acompanhadas de apenas 11 covers. A partir de seu terceiro disco, com a exceção de uma ou outra faixa, todas as canções eram originais.
• Investimento em Long-Plays (LPs). Os artistas pop da época costumavam lançar singles de 3 minutos, ou o ocasional EP com 4 faixas, pois os LPs eram caros demais para o público adolescente (os maiores consumidores de discos). Mesmo assim, os Beatles lançavam uma média de 2 LPs por ano, sempre acompanhados por singles, e sempre venderam muito bem. Eles também estão entre os primeiros a incluírem as letras das músicas nos encartes dos álbuns.
• Quebra de moldes. Era um período ainda muito tradicionalista, em que receitas que davam certo eram repetidas sem comedimento (não muito diferente da avalanche de mais-do-mesmo que vemos hoje nas redes sociais). Quem quer que conseguisse um hit de sucesso automaticamente buscava fazer um novo EP seguindo a mesma linha. Os Beatles beberam desta fonte em seus 2 primeiros discos, mas a partir dali cada trabalho lançado por eles trazia um salto artístico inquestionável — apenas 5 anos separam o lançamento de “With the Beatles” e do Álbum Branco. Parece a mesma banda? Também foram a primeira banda a ter notoriedade em que o baterista era um dos vocalistas, e forçaram as rádios a tocar pela primeira vez uma música com mais de 3 minutos (“Hey Jude”, tem mais de 7!).
• Beatlemania. 3 anos depois de sua estreia, eles já não precisavam incluir o nome da banda nas capas dos discos, tamanho o seu prestígio. E sem as franjas dos Beatles, muito provavelmente, seria o topete do Elvis o que ditaria o tom e estilo da juventude para o resto da década!
• Álbuns Temáticos/Conceituais. Os Beatles são considerados pioneiros neste quesito, mas é assunto controverso, pois o Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band só é um disco temático porque os Beatles assim o promoveram. John e Ringo já falaram muitas vezes sobre como apenas as músicas de abertura e fechamento do álbum estariam ligadas a um tema, mas que qualquer outra faixa poderia estar em outros discos. Além disso, é notório que o Sgt Peppers foi inspirado pelo Pet Sounds, dos Beach Boys. Seja qual for o caso, é fato que o Sgt Peppers estreou em oitavo lugar nas paradas... ainda na pré-venda!! Ninguém tinha sequer ouvido o disco ainda! E mais, o álbum foi lançado numa quinta-feira e, no sábado seguinte, Jimi Hendrix abria seu show em Londres tocando a faixa título.
• Fan Service. Além de gravarem versões exclusivas de canções natalinas e outras festividades para seus fãs-clubes oficiais, os Beatles foram os primeiros a usar faixas “escondidas”, que ganharam popularidade em diversos discos nos anos 90 (nos CDs, eram faixas que tinham contagem negativa no display). No caso, me refiro à “Her Majesty”, que fecha o disco Abbey Road.
• Shows em Estádios. Hoje, ir a um grande estádio de futebol para assistir a mega shows é algo absolutamente corriqueiro. Quer adivinhar quem lançou essa moda? Eles mesmos. Os Beatles tinham à sua disposição os equipamentos mais potentes da época e ainda assim não conseguiam se ouvir quando tocavam ao vivo. A necessidade por espaços maiores que atendessem à demanda de público foi outro motivo que os levou a lotar estádios. Para surpresa de todos, eles continuaram sem conseguir se ouvir, o que finalmente os levou a abandonar as performances ao vivo. As gravadoras eram obviamente contra tal decisão, mas se viram de mãos atadas, tamanha a força da personalidade da banda.
• Recordes e mais recordes. A banda dominou o topo das paradas por boa parte daquela década, chegando a ocupar da primeira à quinta posições simultaneamente. Ao todo, foram 40 meses com uma música em primeiro lugar das paradas no Reino Unido, e 30 meses nas paradas americanas. Em sua estreia ao vivo na TV americana, no
programa do Ed Sullivan (que era um show de variedades parecido com o Silvio Santos nos anos 80-90), 74 milhões de telespectadores (aproximadamente metade da população americana na época) parou para os assistir. E todo mundo sabe que “Yesterday” ainda é a música mais regravada de todos os tempos, com mais de 3 mil versões mundo afora. E isso é apenas uma fração do que estes caras aprontaram em apenas 8 anos.
• Audiovisual. Numa época em que qualquer videoclipe consistia de recortes de vinhetas dos artistas se apresentando ao vivo ou na TV, os Beatles começaram a moda de gravar vídeos promocionais para seus singles, seja fazendo palhaçadas em estúdios fotográficos, caminhando pelas ruas de Liverpool, passando uma tarde ensolarada num parque, ou ilustrando as histórias em suas músicas. E mais, os Beatles foram a escolha para representar a Inglaterra na primeira transmissão via satélite ao vivo ligando 25 países! Para a ocasião, John compôs “All You Need Is Love” dias antes, exclusivamente para o especial de TV “Our World”. Há vários rostos famosos na plateia que participa do coro (como Mr. Mick Jagger), a performance também contava com uma orquestra.
• Inovações em estúdio. “Trilha Dobrada Artificial” (interpretação livre para ‘Artificial Double Tracking’) é uma técnica que unia duas máquinas de fita em rolo para permitir trilhas vocais dobradas. A combinação das fitas gerava a impressão de ter duas pessoas cantando ao mesmo tempo, eliminando a necessidade de gravações adicionais e acelerando o tempo gasto nas gravações. John foi um grande apreciador desta técnica, pois detestava regravar vozes diversas vezes. Isso também abriu portas para experimentos com as trilhas individuais, adicionando efeitos, alterando a velocidade, tocar uma das trilhas de trás para frente, etc. Isto foi central nas suas produções a partir do álbum Revolver, e praticamente foi a semente para o rock psicodélico e outras vertentes mais experimentais. Hoje, as bandas gravam suas músicas separadamente e conseguem corrigir detalhes específicos nas execuções com ajuda de programas, mas naquela época o trabalho era totalmente manual. No começo dos anos 60, a tecnologia disponível nos estúdios, especialmente os fora dos EUA, era bastante limitada. Os primeiros discos dos Beatles foram gravados em gravadores com apenas 2 canais. Somente a partir de “I Wanna Hold Your Hand” eles começaram a usar gravadores de 4 canais (apenas estúdios comerciais americanos tinham 8 canais). Isso não os impediu de gravar álbuns revolucionários como o Sgt Peppers. Aliás, apenas o derradeiro Abbey Road foi contemplado com uma mesa de 8 canais!
• Inovações nas músicas. Além dos malabarismos técnicos com os rolos de fita, os Beatles fizeram uso de Loops divididos, novas abordagens para distorções e fade in, incluíram instrumentos exóticos como cítaras e sintetizadores (Moog), e até ruído branco, cacofonias a partir de sons animais e frequências que apenas cães alcançam. Trouxeram orquestras para se alinharem com suas guitarras distorcidas, e misturaram música ocidental com música oriental.
Em 2019, o filme "Yesterday" nos trouxe uma ideia de como seria um mundo onde os Beatles nunca existiram. Amigos, eu não saberia nem por onde começar!
Semana que vem, vamos mergulhar nas personalidades de cada Beatle, especulando sobre o que pode ter sido determinante para a química do grupo e o que pode ter contribuído para seguirem caminhos diferentes. Até lá!
-Sérgio Máximo
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