E chegamos na parte final da nossa reflexão!
Se você também é fã fervoroso de alguma banda icônica, há boas chances de aqueles que não compartilham de sua paixão o considerarem um tremendo chato pedante. Quem me conhece costuma me associar a qualquer notícia, meme, cameo ou versão relacionadas aos Beatles, e eu sempre fico lisonjeado. Mas por mais que eu seja um apaixonado pela obra dos Beatles, e a importância de suas canções permeando as mais variadas fases da minha biografia, eu não 'endeuso' os caras. Aliás, consigo ver cada um deles como os indivíduos, complexos e humanos, que sempre foram, mas nem sempre mostraram.
Vamos contextualizar. Quando os 4 Beatles nasceram, a Segunda Guerra Mundial ainda estava em seu auge. Na sua adolescência, o rock’n’roll americano era o que havia de mais subversivo e rebelde para época: cabelos engomados com topetes orgulhosos, jaquetas de couro e jeans apertados, muito álcool e cigarros, e uma juventude transviada pressionada entre tradicionalismos religiosos ou militares. O mundo que moldou a geração daqueles 4 rapazes era uma camisa de força segurando uma horda faminta por liberdades.
Agora imagine que, naquele cenário, você tem 20-22 anos e, da noite pro dia, o mundo inteiro sabe quem você é, críticos e artistas estudam seu trabalho, a juventude quer ser como você (e/ou tem sonhos molhados contigo!), e o estabilishment te observa com apreensão por reconhecer seu poder de influência sobre as massas... em diferentes continentes! Não houve nada antes como os Beatles, então nem eles mesmos tinham referências sobre como lidar com tamanha visibilidade e riqueza.
Assim, na primeira fase de sua carreira os Beatles dançaram conforme a música. Vestiam e se portavam como lhes era sugerido, gravavam o que lhes era imposto, e foram explorados por todos os lados (chegando a fazer cerca de 25 shows por mês em turnês). Afinal, eram jovens oriundos de uma cidade portuária, sem qualquer requinte ou sofisticação em seus modos, acostumados a tocar em pubs esfumaçados e frequentados por toda sorte de boêmios e amantes da noite. De repente, estavam em todos os lares, tocando em teatros lotados em inúmeros países, conhecendo a realeza e muitas celebridades, estampando capas de todos os jornais e revistas relevantes. Qualquer um ficaria deslumbrado com aquela virada de vida, mas apenas aqueles 4 saberiam dizer o que foi estar no centro da Beatlemania e o quanto isso os afetou.
Mas os Beatles se tornaram verdadeiras forças da natureza, e logo assumiram as rédeas de sua carreira. Pararam de compor canções açucaradas com declarações de amor ao público jovem e passaram a escrever sobre temas maduros e a filosofar sobre questões humanas. Passaram a ditar o tom e ritmo de suas produções, e conquistaram (quase) carta branca da gravadora para materializarem o que quer que suas mentes visionárias sonhassem. Até decidiram que não iam mais tocar ao vivo e ponto final. Tudo isso em meia década. Agora, aproveitando o gancho com forças da natureza, arrisco aqui uma analogia despretensiosa entre os quatro Beatles e os elementos aristotélicos.
. JOHN LENNON, O ELEMENTO FOGO
O genioso agridoce, uma personalidade ardente, inflamada, enérgica, nada sutil. Ah, e tinha também aquela fama de machucar quase todos que chegassem perto demais. Um cara que cresceu inseguro e arredio pela sensação de rejeição por seus pais, mas dotado de uma mente afiada e grande sensibilidade artística. John sempre sentiu a necessidade de ser reconhecido, especialmente como um alfa, alguém difícil de ignorar, e a música lhe deu esta oportunidade.
Quando adolescente, já era líder de banda de rock, cheio de atitude, descolado, rebelde. Mas esta persona só funcionava em pequenos círculos. Quando se via diante de milhares de pessoas, ou precisava falar sobre temas delicados em entrevistas, sua insegurança era evidente: John era ‘cego como um morcego’, mas sempre aparecia em público sem óculos porque ver o público o deixava tão nervoso que não conseguiria se apresentar, e se retratava de falas polêmicas medindo palavras e em grande desconforto. Tinha tendências destrutivas, abusou de álcool e outras drogas, era abusivo e tóxico em quase todas as suas relações, e teve uma postura lamentável com sua primeira mulher e primeiro filho. A pressão da Beatlemania só colocou mais lenha na fogueira.
Até que Yoko entra na sua vida. Como um bem-vindo primeiro facho de sol depois de anos de nuvens carregadas e tempestades, Yoko compilava todas as mulheres ausentes em uma só entidade. Era uma mulher mais velha, madura, mãe, vinda de uma cultura completamente diferente, e com uma típica alma excentricamente artística. John se viu amando de forma avassaladora, um encontro de almas que ofuscou todas as outras prioridades. Era até meio obsessivo, como a urgência de alguém que passou a vida toda enxergando em tons de cinza e, de repente, descobre um universo de cores vibrantes pulsando a sua frente.
Quando me perguntam se a Yoko foi responsável pelo fim dos Beatles, minha resposta é sucinta: não! Na verdade, sem a Yoko, nem teríamos os últimos álbuns dos Beatles. Sem a incômoda presença dela no estúdio, John nem teria se dado o trabalho de aparecer. Yoko salvou o John. Sem ela, ele nem teria chegado aos 40. Os Beatles perderam o apelo para seus integrantes, exceto para Paul, assim que pararam de tocar ao vivo. John anunciou sua saída oficial da banda assim que os Beatles viraram uma empresa e estavam afundando. Para Lennon, sempre foi sobre a arte.
Nos anos 70, John oscilava entre o rebelde de língua ferina (quando ainda estava se mordendo de mágoas com os Beatles ou separado da Yoko) e o artista sereno e maduro que abordava temas catárticos e universais em suas músicas e entrevistas. Ele estava na sua melhor fase — de volta aos trilhos, numa jornada de redenção pessoal enquanto buscava ser um artista inspirador, um marido exemplar, um pai presente (ele abandonou a música para se dedicar exclusivamente ao segundo filho) — quando foi covardemente assassinado em 1980.
. PAUL McCARTNEY, O ELEMENTO TERRA
O ambicioso incansável, o alicerce confiável, o constante, agraciado com uma fertilidade artística incansável e um imenso apetite por produzir. Aquele que, junto a Hendrix e Cobain, disputa o posto de canhoto mais famoso do rock (depende de pra qual geração você pergunta!).
Paul talvez possa ser considerado aquele de perfil mais “certinho” na banda, o “boa praça”. Quando ele conheceu John, cada um com seus pontos fortes complementares, aquele bom moço era o contraponto perfeito para aquele rebelde encrenqueiro, e o denominador comum era o rock’n’roll. John sempre teve a postura imponente, mas Paul sabia que era um igual, mesmo que aquela pose toda projetasse John como o líder, pois também sabia que era a sua contribuição o que faria a banda acontecer. Paul abriu mão da guitarra e assumiu o baixo quando a banda mais precisou, por exemplo. Foi o maior responsável no processo do John se descobrir compositor, tanto por somarem à escrita um do outro, quanto por disputarem (teoricamente, de forma velada) quem traria a melhor canção para o próximo disco.
E Paul sempre foi muito proativo, muito inspirado e muito diligente. Ok, um baita workaholic. Ringo costuma dizer que, se não fosse pela insistência do Paul em estar sempre chamando os rapazes pro estúdio, os Beatles encerrariam a carreira com apenas 3 ou 4 discos no currículo.
Paul era como aquele cara que fica cuidando para que a churrasqueira não apague.
Escreveu trilhas para filmes e músicas para outros artistas, participou de discos de outros. Não queria parar de tocar ao vivo, e tentou convencer a banda a voltar a fazer shows. Se esforçou para manter o grupo unido após a morte de Brian Epstein, instigou a produção de filmes e documentários para TV. Quando a banda já estava em sua fase descendente, foi Paul quem os convenceu a voltar ao estúdio e voltar a fazer o bom e velho rock’n’roll, o que nos brindou com o sensacional Abbey Road (meu disco favorito, diga-se de passagem).
Mas chega um momento em que até os mais resilientes jogam a toalha, não é? Os Beatles eram gigantes, e continuariam assim se todos mantivessem o pique que tinham no começo. Paul tentou até o último momento, e quando a banda se dissolveu, ele pegou toda aquela energia criativa, toda aquela disposição em se divertir fazendo música e tocando as pessoas, e recomeçou. Várias vezes. E hoje, aos 81 anos, continua lotando estádios e produzindo coisas novas.
.GEORGE HARRISON, O ELEMENTO AR
O introspectivo precoce, o mais contemplativo e espiritualizado, o menos materialista e, sendo o mais discreto, muitas vezes parecia invisível na disputa pelos holofotes. Em muitos aspectos, George era bastante parecido com o John: era particularmente sarcástico, tinha um raciocínio sagaz, era extremamente sensível e maduro para sua idade, e também tinha problemas com figuras de autoridade (talvez por conta de sua descendência irlandesa?). A grande diferença estava em seu ambiente familiar, com irmãos mais velhos e pais bastante presentes.
Quando George começou a fazer parte da trupe, ele era bem mais novo que os demais (ok, a diferença era de uns 3 anos, mas na adolescência isso é um salto e tanto) e, portanto, pouco respeitado, especialmente por John. George era até esforçado, mas nenhum adolescente competitivo que se preze iria dar ibope para o novato. Uma vez efetivado, ele viveu seu sonho de liberdade: vivia na estrada, muitas noites regadas a rock’n’roll e, quando veio a Beatlemania, tinha o mundo aos seus pés. Até que pararam de viajar e tocar ao vivo, e o ritmo alucinado que tomou sua vida foi desacelerando.
George então aproveita o tempo mais livre e inicia uma jornada de autoconhecimento, provavelmente motivado pelo seu interesse em música indiana, e mais tarde em religiões, culturas e filosofias orientais. É como se libertasse das amarras do materialismo e abrisse os olhos para o tanto de tempo e energia que perdemos com coisas superficiais. E isso incluía os egos inflados de seus companheiros de banda e as demandas do contrato com a gravadora. George já tinha pouco espaço para se expressar artisticamente e, sem um parceiro como na dupla Lennon-McCartney, estar com a banda passou a ser só mais um dia no escritório. Seu desencanto pelo projeto veio mais cedo e mais rápido que para os demais. A coisa ficou tão mecânica para George, que sempre que ele se referia a alguma experiência com a banda em entrevistas, era de forma tão corriqueira e pé-no-chão que nem parecia estar fazendo história!
George deixou de lado sua persona de jovem astro do rock e deixou aflorar sua personalidade duramente sincera e maturidade espiritual, como um velho sábio preso num corpo jovem (lembrem-se que ele sempre foi o caçula). Sua visão de mundo era tão diferenciada e desprendida, que ele lidou de forma inacreditavelmente evoluída quando sua mulher e seu melhor amigo, Eric Clapton, se apaixonaram. E sua resposta ao perceber que havia vida musical após os Beatles foi lançar o primeiro álbum triplo da história (por um único artista), o fantástico “All Things Must Pass”, como um berro entalado no peito e um belo tapa na cara de quem desdenhava de sua capacidade de composição.
Era um homem simples e incrivelmente companheiro. A cena final do filme de Martin Scorcese “Living in the Material World”, sobre a vida de George, sempre me desaba. Ringo conta que precisava ir com urgência para os EUA, pois sua filha havia descoberto um tumor cerebral, mas passou para visitar o amigo, já bastante debilitado no fim de sua batalha contra o câncer.
George nem conseguia mais ficar sentado. Emocionado, Ringo revela as últimas palavras que ouviu do amigo: “Quer que eu vá com você?”
Esse era o George Harrison.
.RINGO STARR, O ELEMENTO ÁGUA
O coração da banda, o frescor jovial, o adaptável, o sorriso mais aconchegante, o elo mais necessário na sinergia que foram os Beatles.
Ringo era o mais velho da banda, mas foi o último a entrar no projeto. Talvez tenha sido o Beatle com a infância mais difícil, tendo passado boa parte de sua infância e pré-adolescência em leitos de hospitais (tendo até vivenciado um coma neste período). Apesar de tudo isso, sempre demonstrou ser uma pessoa leve, sorridente, presente e protetora, um eterno brincalhão, tendo aprendido desde muito cedo a se adaptar e contornar obstáculos — é um dos canhotos da banda, diga-se de passagem, mas foi condicionado a tocar numa bateria para destros, por exemplo.
Ele já era popular nos pubs de Liverpool como o baterista consistente que acompanhava diversas bandas. Aliás, foi nesta fase que ganhou seu apelido: Ringo por conta dos diversos anéis que usava (derivando de ‘ring’, que significa anel), e Starr por conta dos solos que executava, mesmo que relutantemente (um momento nas performances que foi batizado de “Starr Time”).
Ringo encontrou nos Beatles irmãos de vida, e seu amor pelos outros era palpável. Talvez por isso, tenha sido o primeiro a deixar a banda, ainda na produção do Álbum Branco, magoado com as rixas internas entre os demais — mas os outros Beatles o imploraram para que ele voltasse. Ele era aquele que, quando a banda não estava trabalhando em nada, sempre dava um jeito de se fazer presente para outro Beatle, seja em resenhas em casa ou viajando de férias.
Dotado de um senso de humor peculiar, sempre foi o mestre das tiradas inspiradas: foi a partir de expressões espontâneas suas, como “a hard day’s night” (‘a noite de um dia duro’) e “tomorrow never knows” (algo como ‘o amanhã nunca sabe’), que Lennon tirou inspiração para algumas músicas.
Com o fim das turnês e os avanços na tecnologia dos estúdios, os Beatles começam a investir meses na criação de cada álbum novo, explorando novas possibilidades. Ringo começa a se sentir cada vez mais obsoleto, conforme a banda passa a experimentar estilos que não pediam sua expertise, e ele se via passando horas no estúdio jogando cartas com os técnicos enquanto os demais trabalhavam suas ideias. Ringo nunca foi um multi-instrumentista fluente como os outros, o que pode ter contribuído para sua carreira solo ter sido menos expressiva que a dos demais.
Mas o que ele sempre teve de sobra foi carisma e coração. Ringo foi o último Beatle a estar com John, apenas 3 semanas antes de seu assassinato, e o último Beatle a estar com George, também semanas antes de sua partida.
MINHA CONCLUSÃO?
Não é possível apontar um culpado ou gatilho que tenha levado ao fim dos Beatles. Às vezes, os astros se alinham e as coisas simplesmente se encaixam. Os Beatles foram como um meteoro que chegou, deixou o mundo em polvorosa, e passou. Seu rastro ainda pode ser visto até hoje, mas é exatamente como quando olhamos para as estrelas: tudo o que vemos está no passado. E toda boa história tem um começo, meio e fim.
Na saída da adolescência temos: um cara que transbordava atitude e queria ser o alfa em tudo, revoltado com as cartas que a vida lhe deu, mas dotado de uma inteligência afiada e grande sensibilidade escondida; um rapaz fervilhando de ideias e talentos e doido para ser visto como um igual por aquele alfa, mas que vinha de um ambiente seguro e vestia a camisa do diplomata; um garoto inquieto, rebelde sem causa, que olhava para os amigos mais velhos como a salvação para sua monotonia; e um jovem carismático de origem simples, mas já visto como um veterano pelos demais.
Saltamos para a Beatlemania; curtos, porém intensos anos, com tudo acontecendo ao mesmo tempo, o tempo todo. Exaustão. Férias cada vez mais longas, assim como os períodos em estúdio para novas produções. E agora nossos protagonistas já estão indo rumo aos 30 anos. Em meio a todo frisson, e o envelhecimento precoce de todos, o relógio biológico começa a gritar.
Antes do fim da década, todos estão casados, alguns com filhos.
No final daquela década, não temos mais pós-adolescentes intoxicados pela fama e cheios de energia. Temos homens feitos, com diversas ramificações em suas relações e diferenças significativas na forma como encaravam a vida, o mundo e a sua arte. Nada mais natural que cada um seguisse seu caminho, afinal, eles nos deram tanto que, mais de meio século depois de seu fim, ainda instigam nostalgia, geram engajamento e encantam cada geração seguinte.
P.S.: deixem a Yoko em paz!!
Trilogia escrita por Sérgio Máximo
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